Uma delícia de praia
11.3.22Década de 50, domingo lá em casa era sagrado a missa das 6 horas na Capela da Pupileira e praia depois. A missa só minha mãe ia, mas, me levava às vezes.
Na volta do ato religioso, mudar de roupa e embarcar no possante Citröen, evidentemente preto que, captando bem o calor, transformava o seu interior num ambiente que em termos de temperatura só perdia para o forno que assava o peru de Natal. Aliás, ar condicionado em carro não existia, e nem em casa também.
Meu pai, com bigodinho de fiscal de gafieira e já sentado ao volante, esquentava o carro (hábito da época) buzinava várias vezes, entremeadas a gritos de: “Vamos logo, senão vai ficar muito tarde”. Tarde? Às sete da manhã? Eu apenas de calção de náilon, para não molhar o estofamento; minha mãe com um chapéu de palha enorme, que parecia escultura do planeta Saturno, e um roupão sugerindo uma roupa de samurai. Se a noite tivesse alguma solenidade, como um casamento, aí trocava o chapéu por um incontável número de bobes, cobertos com lenço coloridíssimo com motivos tropicais; minha irmã, ainda um bebê, no colo e atrás eu ficava com alguns primos que volta e meia iam com a gente. Tudo junto feito cachorros recém nascidos, porque era proibido ficar próximo das janelas.
A primeira tortura era a parada obrigatória para botar gasolina no carro. Meu pai, amigo do bombeiro (era assim que se chamava o frentista de hoje), saltava para acompanhar o abastecimento e trocava ideias com o moço enquanto a bomba de funcionamento manual demorava o suficiente para que nós ficássemos quase assados.
Segue a viagem e defronte ao Farol da Barra uma pausa para o obrigatório acarajé de D. Bonifácia. Dentro do carro um pequeno alívio, já que o Edifício Oceania temporariamente oferecia generosa sombra.
Acarajés comidos e a encomenda de minha mãe de cocadas de coco (branca e preta) para levar, já devidamente pagos, segue o comboio na sua alegre via Crucis.
Próxima parada, largo das baianas em Amaralina. porque quem estava com sede agora era o nosso eficiente veículo, que de capô aberto esperava sua dose de água no radiador - esse aberto com a ajuda de uma toalha de multi uso em função da temperatura, que poderia queimar as mãos.
Passa-se a casa navio, construção de um projeto que imitava um navio (residência de Dr. Bureau) e seguíamos em direção do objetivo final que eram as praias de Piatã ou Itapuan.
Chegando, nada de saltar pelas portas da esquerda e sim pelas da direita, já quase pisando na areia.
Areia por sinal mais fervente do que o carro, o que obrigava caminhada pela grama, onde em algumas oportunidades se furava o pé em algum toco seco, muito comuns no lugar.
No local de instalação do salvador sombreiro, meu pai exibia sua expertise em furar o chão com o pau da barraca para o posterior encaixe do próprio que, já aberto, começava sua missão de proporcionar a terapêutica sombra tão sonhada.
Começa então o festival de atrações, com o homem do co,co que chamava minha mãe de freguesa, e ela retribuía na mesma classificação, sempre negociando preço.
Puxando um jeguinho com dois caçoais, um com os cocos bem mornos e o outro vazio para recolher o resto do bagaço (nessa época já existia o politicamente correto).
O homem do sorvete de cantimplora, o do amendoim (cozido ou torrado), o do picolé no carrinho de mão (não existia isopor) e mais um monte de "atrações", tudo isso nos intervalos de mergulhos dados com óculos próprios e arpão de vergalhão de obra com a ponta afiada no meio fio e borracha de soro, devidamente amarrada com barbante forte. O vidro do óculos de mergulhar tinha lentes que aumentavam o tamanho, aí uma pititinga virava um tubarão.
Perto da hora de ir embora, antes de começar a operação de desmonte, minha mãe chamava sem sucesso várias vezes pra gente sair da água - o que era encarado com natural descaso. Pra resolver o pedido final e fatal, gritava: “Júlio, veja se você consegue tirar esse menino da água, já está todo engiado (ponta dos dedos enrugados e boca roxa eram os sintomas). Com meu pai, bastava um olhar e pronto, tudo resolvido. Aí tinha o castigo, ficar em pé no sol para quarar e depois a enxugada com aquela toalha da tampa do radiador (lembram?), que agora já portava grãos de areia, o que sempre contribuía para pequenos arranhões desprezíveis, trabalhava mais uma vez. Mas, como toda volta é sempre mais rápida, em casa também se cumpria um ritual. Banho imediatamente para tirar o sal, roupa seca e mesa para comer a galinha ao molho pardo divina que Lurdes fazia, ao som de Biemvinido Granda que cantava , "Tu Precio" na radiola Philips da sala, porque o almoço era na cozinha. Depois , às vezes meu pai me levava pra ver jogo do Galícia.
Ufa!!! Até o próximo domingo que, aliás, pela lei do revezamento, era seguramente uma feijoada.
Agora, digam com franqueza: era ou não era uma delícia de PRAIA?
Ruy Botelho.
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