A saideira de um gênio chamado Aldir Blanc

13.10.21



Primavera enfim legitimada por dezenas de caraibeiras amarelando o sertão, leio que saiu “Inédito”, novo disco de Aldir Blanc, que pelo padrão dos lançamentos póstumos tinha tudo pra ser uma daquelas homenagens recheadas de canções adormecidas no limbo dos acordes imperfeitos, que pra não manchar a biografia do autor só saem depois de sua morte. Mas dessa vez, que feliz decepção!

Provando-se um fértil produtor de versos devolutos cultivados por velhos meeiros que sabem o adubo exato pra que eles não desandem, não sei se por essas cores provocadas pelo equinócio cruzando o equador celeste ou se pelos foguetes que ora louvam o santo que batiza meu rio, mas pouquíssimas vezes a primeira audição de um disco me comoveu tanto, a ponto de só me lembrar da água borbulhando no fogo ao ouvir “O café tá pronto?”, dito pela voz daquela que, mesmo nos vendavais, nunca deixou de me chamar na hora em que a Lua vai nascer.

E enquanto a água escorria coador abaixo e ela voltava da horta com berinjelas nas mãos, eu ouvia “Castelo de Lágrimas”, onde Aldir peregrina através da voz de Bethânia por estradas, mesquitas e santuários, desde o dia em que “você se foi de mim”. E mesmo ganhando no caminho água de poço, mel e pão, nada, absolutamente nada, sacia a ânsia no seu coração. No fim, de mãos vazias e ao mesmo tempo cheias de um amor sem ilusão, ele conclui, no jeito Blanc de rimar, que: “Não tem fim esse querer/ De saudade, areia e sal/ Com lágrimas ergo a você/ Um novo Taj Mahal”.

Em seguida, já lavando a louça diante de uma janela que nessa época certamente faria Monet emoldurar seu parapeito e assinar no basculante, a voz absurdamente grave de Dory Caymmi faz vibrar facas na pia e então começa “Provavelmente em Búzios”, como bem disse o querido Claudio Leal - num belo texto publicado na Folha de São Paulo -, a melhor do disco.

Composta por Cristóvão Bastos no mesmo piano que humilhou a dissonância ao nos dar “Resposta ao Tempo”, Aldir, tal uma Fênix baleada flanando pelos bares da Tijuca, diz não conhecer a palavra perder, tampouco dá a mão ao desgosto e, mesmo com a vida a lhe ferir, volta das cinzas “com um riso no rosto”.

Infelizmente me falta espaço pra falar da belíssima “Mulher Lunar” (“E me ocorre/ que eu nem cantava e você já sorria/ eu nem sonhava e você já sabia/ que viria a ser minha inspiração”), nem da loura sambando entre a coxinha e o camarão ao violão de João Bosco em “Agora Sou Diretoria”, muito menos do tango amineirado “Virulência”, inesperada parceria com o “comendador” Alexandre Nero, que fecha o disco lembrando que um vírus nos virou do avesso e, na falta de ar, nos acudiu “um governo deserto”.

Em dezembro de 2020, o projeto Bosque da Memória plantou uma goiabeira com seu nome. Pelo tempo, “passarinhos estradivários” já cantam em seus galhos e bicam suas sementes que, filhas de quem são, certamente nascerão poesias no próximo verão. Mil vivas a Aldir!


Por Janio Soares


Janio Ferreira Soares, cronista, é secretário de cultura de Paulo Afonso, na beira baiana do Rio São Francisco.


PUBLICADO EM: Bahia em Pauta - 10/10/2021

IMAGEM DE CAPA: Divulgação

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1 comentários

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