CONVERSA: Mateus Aleluia & Sérgio Siqueira
9.6.21Essa conversa aconteceu quando fui mostrar a Mateus, o esboço do e-book "África do lado de cá", e enquanto passava calmamente página por página, para irmos discutindo, liguei o gravador para memorizar tudo depois. Ficamos ali tomando uísque, comentando cada página, conversando e rindo muito. O gravador foi esquecido ligado e a conversa tomou um rumo para diversos temas e como não conversamos sobre a vida de ninguém, ai está o registro, que fica como uma espécie de "making off " que agora disponibilizamos.
Mateus Aleluia – Comandante do pensamento!
Sérgio Siqueira – Grande Comendador, comandante de todas as etnias, vamos encher os copos para você ver como ficou a África do lado de cá. Deixe eu ligar o computador.
Ai, êta coluna velha, tudo dói! Outro dia lendo filosofia, me deparei com a frase : “Se o corpo não deteriorasse, a morte seria insuportável.”
MA – Seria insuportável mesmo. Isso é o que equilibra.
SS – Bukowski disse: A sabedoria está em saber desistir.
MA – Entrego tudo na mão do tempo, quando não der mais entrego meu espírito a quem me deu o espírito. Se eu dormir e não acordar eu deixei de ser, se eu acordo, eu nasci de novo e tenho obrigação de me reciclar. Eu não sou nada, não tenho o controle de nada. Quando eu digo que eu não sou nada, estou sendo a verdade. Eu pego no sono e essa força que me pôs no mundo e que me sustenta, é que me faz acordar. Todo dia você morre e se minha carne não foi retirada, eu nasci de novo.
SS – Você já entrou no túnel. Eu já desmaiei algumas vezes e quando isso pinta, você respira fundo pra não ir, vem o medo de morrer, mas quando você vai, é aquele túnel de luz com você flutuando, vem uma paz que não dá pra descrever, você se deixa levar, você não quer voltar.
MA – Sempre volta, comigo as coisas acontecem diferente. Eu entro sem querer entrar, fico sem querer ficar e saio sem querer sair. Eu não tenho domínio sobre nada, o tempo é que tem todo o domínio sobre mim. Sou totalmente dominado.
SS – É a ausência de pensamento. O santo ou a viagem se dá quando você consegue ausência de pensamento e a música ajuda nisso, as batidas repetitivas leva você a uma espécie de êxtase. É assim com os toques de candomblé, com os mantras indianos e com o barroco, aonde a igreja acrescentou templos luxuosos e grandiosos, que quando a música bate vem aquele eco.
MA – Aquele eco e aquele harmônico, agora tem uma diferença, no candomblé quando eles são chamados, eles vem. No católico Santo Antônio não vem pra conversar, no candomblé Ogum vem. Na índia, Buda não baixa com o mantra. Orixá é a força da cabeça, não existe Orixá sem cabeça. Quando os tambores batem, não tem como explicar.
SS – Quando estive no Vaticano e coloquei os pés naqueles salões, vi de imediato todos os pecados ali, impressiona como gostam de ouro e luxo. E jogam com o medo. O inferno é um símbolo forte.
MA – Medo é dominação. São os jogos do poder. O Papa é o Trump da religião, de uma maneira diferente. Dai a Cesar o que é de Cesar, eles que fiquem com o ouro deles lá, que eu fico aqui com meu whisky. Tatiana, diga o que eu quero agora, diga ai!
Tatiana – Ir ao Benin.
MA – E depois?
Tatiana – Depois ir para Portugal.
MA – Fazer o que, diga.
Tatiana – Abrir um Café Concerto.
MA – Minha luta agora é ir a Benin fazer uma pesquisa e daí ir para Portugal, abrir um Café Concerto no Algarve. Ficar lá, vou na cozinha , depois pego o violão e de avental mesmo saio para tocar e contar minhas histórias, para quem quiser ouvir. Vou ficar por ali observando, sem complicar a vida, não quero mais nada além disso. Conversar com os amigos, estar com a família, falar bobagens e ficar observando. Esse é o plano.
SS – Você curte esse lance de pesquisa, bom ter duas atividades que se gosta muito.
MA – Eu sou um professor, um investigador cultural, meu negócio é pesquisa, cantar é o meu lado vaidoso, digamos assim.
SS – Você agora, está com muitas nacionalidades e muitos pousos, Salvador – Cachoeira – Lisboa – Luanda. Portugal é lindo, me senti numa Bahia organizada, cheia de charme. Quando fui a Porto, atravessava para o outro lado e ficava horas tomando vinho, olhando o vai e vem de Gaia e o Porto do outro lado. Ficava comendo polvo, sardinha, tomando vinho e apreciando as gaivotas. Saía bêbado. E a culinária e os doces, um perigo.
MA – Um perigo mesmo, um perigo. Quando eu chego na casa da irmã de Rosinha, tenho que ficar atento. Portugal é um país de tradição e quem souber mexer com a tradição caminha bem nele, o país dos cravos vermelhos. Portugal é maravilha de cenário, quero ficar ali pelo Algarve, Albufeira, Portimão , de vez em quando vou aos países bascos passear e visitar meu neto. Você conhece os países bascos?
SS – Não, na Espanha, só conheço Madrid.
MA – Aquilo é um paraíso, aquilo é lindo, bonito toda a vida. Aquilo foi feito a pincel. Só você passando por lá para ver. É você viver aquilo, estar naquilo. Você ficar por ali, vivendo e dando um pulo também em Barcelona, maravilha de cenário.
SS – O momento atual, está difícil.
MA – Estou realista, da maneira que vier, como diz em Angola : “ quem tem competência se estabelece “. Esse é o ditado mais real. Os políticos a gente já sabe como é. Não podemos deixar eles nos influenciar a ser como eles. Não posso me tornar um deles, não tenho essa maldade na cabeça.
Ficou tudo muito parecido, esquerda, direita, sempre foco no incentivo ao consumo e nunca em educação, que é o caminho para diminuir a desigualdade. Educação básica de qualidade para todos, até o colegial. Tudo ficou antigo. Você olha para eles e sente uma energia ruim na maioria, todos loucos por dinheiro, viciados mesmo.
MA – Eu convivi de perto com isso tudo, convivi mesmo. É uma época que eu tento até esquecer. O momento é para se declarar a vida. Eu sou uma Assimilado Urbano. Você sabe o que é um Assimilado?
SS – Uma pessoa que assimilou costumes.
MA – Assimilou uma civilização que não era dele. Pegamos uma assimilação da Grande Bahia. Se não houvesse essa assimilação, essa mistura, morríamos todos.
SS – E daí surgiu uma nova África do lado de cá, ressignificada, com uma cultura rica e única, agregando o europeu e o índio. A cultura indígena é que não tem a força que deveria.
MA – Não tem por causa da mídia, que dá pouca importância. Ninguém fala do índio. Não existiria Palmares sem os índios, mostrando os caminhos, os esconderijos. O próprio negro que é tripudiado, não fala do índio. Essa história ainda tem que ser contada.
SS – O Brasil já se misturou, no último censo, o número que se declararam pardos era o maior, na Bahia nem se fala, queiram ou não queiram, somos mestiços e essa mestiçagem não para mais, mesmo que alguns branquelos e alguns negões não reconheçam isso.
MA – O passo é adiante, o que tem que ser, é como fez Cabo Verde, nada desse negócio de branco, pardo, negro. Você é o que ? Sou cabo-verdiano! Na Bahia, você é o que ? sou baiano e pronto. Essa terra foi feita por todos nós, isso tem que ser compreendido. Temos que acabar com todo e qualquer fundamentalismo. O caboclo é a realidade e o branco está ali, o negro está ali. Esse é o símbolo , inclusive, da nossa independência. Agora, enquanto ficarmos nessas estatística, negro, branco, índio, pardo, nós não andamos. Temos que acabar com isso, somos todos baianos.
Quando eu falo “quando estou feliz tenho sonho cor de “criola” , estou falando de mistura, está tudo lá branco, negro, índio, mameluco.
SS – Verdade, somos todos baianos, estamos no mesmo barco e não adianta pular porque a gravidade não deixa.
MA – Não deixa e na prisão, as vezes quem está lá dentro, tá mais liberto do que quem está fora.
SS - Me lembrei agora daquela nossa ida ao Ventura, quando chegamos no Lago de Oxum e os cachorros que estavam com a gente enlouqueceram, corriam, pulavam , ficavam de tocaia, como se algo invisível, estivesse mexendo com eles.
MA – Os invisíveis estavam brincando com eles, você viu aquilo, fotografou.
SS – Durou bem uns 15 minutos, no começo fiquei meio sem ação, depois fotografei boas sequências.
MA – No Candomblé, nós temos aquilo que não vemos.
SS – Sei que os cachorros saíram cansados da brincadeira.
Aquele nosso “ pé na estrada” foi muito bom, visitamos 3 pontos de força poderosos Ventura, Icimimó Didè e Engenho da Vitória. Muita energia naquilo tudo.
MA – Poderoso! Não são apenas 3 pontos de força, aquilo é um triangulo, dentro de um cosmo que é Cachoeira. Aquilo é um negócio!
SS – Estou lendo “ a vida secreta das árvores “, elas se comunicam pelas raízes, ajudam umas as outras, emitem sons avisando quando vem pragas e liberam toxinas quando se sentem ameaçadas. O lance das toxinas saquei logo, pois sempre que podo as árvores saio todo me coçando, no começo pensei que eram formigas, depois que li o livro saquei que eram elas se defendendo, ao se sentirem ameaçadas.
MA – Peça a Tenille, não sei aonde está , ela gravou o relato dos Baobás. Você sabe o que é um baobá ?
SS – Sei , aquela árvore belíssima, símbolo da África
MA – Pois é , Tenille foi a Luanda comigo e gravou essa conversa , com uma espécie de Griô, ele falando do que acontece lá embaixo e dos incríveis desenhos geométricos que os baobás fazem enquanto se desenvolvem. Rapaz!
SS – São muitos os universos!
MA – E a inteligência dos golfinhos, o sistema de comunicação deles. E as baleias?
SS – Os animais tem sentimentos, choram, protegem suas crias. Um dia descobrirão os segredos dos animais, será um espanto.
MA – Não creio, o mundo é bonito assim.
SS - O tempo tá passando, mas se o tempo é infinito e o universo está em expansão, tudo pode acontecer , todas as possibilidades existem. Pode nascer de novo um Mateus Aleluia e tudo ser igual novamente.
MA – Isso você pensando em termos de matemática, é uma conversa intelectualizada.
SS – Verdade, tudo depende do ponto de vista, como aquela sua frase: Angola é separada e unida por um mar de sal. Se você disser que Angola está separada da Bahia pelo mar você está certo e se disser que ela está unida está certo também.
MA – E se você disser que ela está unida e separada, também está. E por baixo desse mar, um lençol freático, é a água que não para.
SS – Seguindo seu fluxo...
MA – A coisa é tão mesclada, que pra gente perceber, tem que não perceber. “ Meu pensamento parece uma coisa a toa, mas como é que ele voa”, Lupicínio. Você já estudou teosofia ?
SS – Não, curto muito e leio filosofia.
MA – Estou falando de teosofia, o estudo de Deus.
Ele afirma : Eu mato e dou a vida. Eu firo e eu saro. E se eu sacar minha espada reluzente de 2 fios e travar o juízo da minha mão. Olha que imagem, sacar a espada e minha mão ficar sem juízo. O mal é bom ? Ai, vou fazer uma análise teosófica e que análise posso fazer ? Aonde tá a indecência, tá a decência. Não tem explicação. Vou tomar meu uísque . É a gente aceitar o mundo e deixar o mundo seguir. O mundo é seu ? Não, não é !
SS - Olha esse saveiro, vou colocar ele naquela parte que você fala do mar, de sonho, de saudade.
MA – Olha, parece uma borboleta, tá bonito !
SS – E a África do lado de lá ? Em Luanda quando você chegou com os Tincoãs e cantou, o lado de lá se identificou logo.
MA - Na hora, quando cantamos o “CQC” Liceu Vieira Dias, uma grande artista popular disse logo , isso é quimbundo arcaico, quando cantamos “deixa a gira girar” , bateu e na hora de Cordeiro de Nanã, que não é música de lá, é da Guiné Bissau, eles repetiam com a gente.
Sou de Nanã, euá, euá, euá, ê
Sou de Nanã, euá, euá, éua , ê
Eles responderam de lá:
Sou de Nanã euâ, euâ, euâ, ê
Sou de Nanã euâ, euâ, euâ , ê
SS – Brindemos!
MA – Saravá!
IMAGEM DE CAPA: ~Oryctes~ on VisualHunt
0 comentários