Um rouxinol carente nas noites do sertão
23.5.21Enquanto nosso psicopata-mor continua desdenhando de quase meio milhão de mortos, tento espairecer lendo poemas e observando outros tantos que diariamente aparecem no meu quintal. Sim, porque se há algo que aprendi depois do Covid foi o fato de prestar mais atenção nos versos que se autodeclamam ao meu redor e que, por costumeiros, achava que teria todo tempo do mundo pra lê-los.
Mas mudei de opinião assim que a vida me mandou um recado, dizendo: “Ei, seu velho vagabundo, tá vendo aqueles paturis mergulhando bem ali no lago em frente? Pois se desligue um pouco das telas que regem seu tempo e observe-os com mais atenção, porque amanhã, como no poema de Manuel Bandeira, você poderá ser só tosse, tosse, tosse e aí, ao perguntar ao doutor se é possível tratar o pneumotórax, ele responderá: amigo, a única coisa que eu posso fazer por você é tocar um tango argentino!”. Depois disso comecei a ouvir Astor Piazzolla tocando Adiós Nonino, não com portas e janelas fechadas pra realçar o som de seu bandoneon.
É que o momento, amigo leitor e amiga leitora, pede a urgência dos ventos das manhãs trazendo o cheiro de lenha queimando um café distante; pede ouvidos afiados pra escutar o som dos foguetes que já anunciam a trezena de Santo Antônio que, novamente, será de rezas longínquas dos fiéis que resistiram à peste; pede, como dizia Olavo Bilac, nunca morrer assim, num dia assim, de um maio assim, com o Sol clareando roseiras após uma semana de chuva fina; pede que façamos igual ao genial Manoel de Barros, que adorava desiventar objetos, como, por exemplo, o pente, dando-lhe a opção de não mais pentear, até que ele pudesse se sentir à vontade para ser uma begônia ou esse jenipapo absoluto que me olha meio Caetano, meio Mabel – e que em breve virará licor num São João de fogueiras tristes.
A propósito, sempre achei que poesia é tudo aquilo que seu olho inventa e o dicionário estraga. O próprio Manoel de Barros conta que durante anos o rio que dava uma volta atrás de sua casa lhe parecia um vidro mole fazendo uma curva, até o dia em que um adulto lhe explicou que aquilo era uma enseada. Ao saber o nome real de sua fantasia, o vidro trincou-se e a imagem empobreceu pra sempre.
Tudo isso pra dizer que desde a semana passada, depois da meia-noite, um solitário rouxinol dana-se a cantar perto da janela do meu quarto. Não me lembro de já tê-lo ouvido assim tão tarde. Valéria também não. O Google diz que ele faz isso para atrair a fêmea. Torço pra que ela continue fazendo bico. Afinal, não é toda madrugada que podemos ouvir versos num rouxinês apaixonado, cuja tradução deve ser promessas à amada de um ninho bem quentinho, onde, enfim, eles poderão voar sem asas. Viva a poesia! Viva Santo Antônio! Viva os idiotas de minha aldeia!
Por Janio Ferreira Soares
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