O tenor, o barítono e o outono que se aproxima
17.3.21Nem aí pra vida real, os primeiros anuns-pretos pousam sobre a grama que resiste graças à água do rio com nome de santo. Sumidos desde o ano passado, eles lembram ministros do STF roçando suas togas nos jacarandás impregnados de maquiavelismos e vênias, notadamente um topetudo faceiro, clone exato de Luiz Fux e sua kanekalon de fios naturais adornando sua bronzeada tez.
Na calçada estufada por raízes tortas, o cheiro de oitis espatifados no chão traz a lembrança do hálito de meu pai quando chegava calibrado de fumo e álcool e ficava ouvindo rádio numa rede arrastando suas franjas no cimento queimado que dava na cozinha. Apago as luzes da varanda e as últimas muriçocas zunem diante do bago tangerina surgindo por trás da barragem, que logo virará gema caipira esturricando ainda mais o mato onde a irrigação não chega.
Tanjo sapos beirando a porta, mas não para tão longe, na esperança de que eles comam os escorpiões que de noite correm soltos nos rejuntes dos ladrilhos como se fossem carrinhos de autorama com um ferrão no aerofólio. Do nada uma brisa fresca entra por baixo do meu calção e, surpreso pela agradável lufada, ouço um “É o outono chegando!” vindo da janela do quarto, frase que freia meus passos e justifica a repentina aragem soprando folhas secas sobre minha havaiana florida.
Desligado das sutilezas que marcam o tempo, antes mesmo de lhe perguntar se já estamos sob suas particularidades, “Mãe Valéria” (aquela que há mais de 30 anos me traz o equinócio e a paz antes da hora) se adianta e, tal uma Rapunzel sem tranças nem tramelas, diz que seu início oficial é só no próximo sábado, 20, mas que os dias já estão mais curtos e as noites mais longas, fora – eu que o diga – os aprazíveis ventos matinais a refrescar intimidades de velho que não usa cueca sob calções folgados.
Agora os anuns pousam numa aroeira e deixam sua copa apinhada de pontos pretos retintos. Precavido, antes de continuar leio o que acabei de escrever pra me assegurar de que não serei censurado pelos caçadores de sinhás perdidas (casta que já acertou em cheio Monteiro Lobato, Machado de Assis e outros), mas chego à conclusão de que ninguém vai perder tempo com o que diz um velho ribeirinho de barrancas tão remotas.
Pra terminar, essa volta de Lula me lembra daquela piada do barítono, que antes de sair do palco sob vaias e tomates, ameaçou: “Vocês ainda não viram nada. Esperem pelo tenor!”.
A piada acaba aí, mas nada impede que ela siga lá na frente, com o público sendo instigado a escolher entre o desafinado que saiu numa boa do palco e o outro que, além de cantar mal, mandou a plateia enfiar o ingresso no mesmo buraco onde já vive a assustada moça do leite condensando, coitada, com o aventalzinho todo sujo de cocô.
Por Janio Ferreira Soares
Janio Ferreira Soares, cronista, é secretário de Cultura de Paulo Afonso, na margem baiana do Rio São Francisco.
PUBLICADO EM: Bahia em Pauta - 14 de março de 2021
IMAGEM DE CAPA: Steve Buissinne por Pixabay
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