A vida, definitivamente imita a arte, principalmente se ela surge em forma de uma inesquecível novela com as digitais de Dias Gomes na trama. Falo de O Bem-Amado, que após 48 anos retorna no Globoplay para provar que, além de craque na dramaturgia, o genial baiano também era uma espécie de bruxo, pois lá em 1973 anteviu que os absurdos do coronel Odorico Paraguaçu transcenderiam as fronteiras do imaginário e ressurgiriam no Palácio do Planalto pela boca torta de um boquirroto sem noção.
Primeira novela colorida da TV brasileira, a história se passa em Sucupira, onde o inescrupuloso Odorico (Paulo Gracindo), depois de observar um pessoal zanzando com um defunto sem um lugar pra enterrá-lo, tem a brilhante ideia de se candidatar a prefeito com um slogan fake e matador: “Vote num homem sério e ganhe um cemitério”. Eleito, ele então desvia todos os recursos possíveis até realizar seu sonho.
A partir dai tudo muda, pois sem morrer mais ninguém na cidade sua obra não é inaugurada, o que o leva a contratar o famoso pistoleiro Zeca Diabo (Lima Duarte) para, digamos, facilitar o preenchimento da primeira cova e proporcionar seu tão aguardado discurso. Acontece que Zeca tornou-se um homem temente a padim Ciço e mais não conto, porque aí vai faltar espaço pra falar das afinidades entre o coronel sem patente e o capitão sem juízo. Simbora.
A primeira e chocante semelhança encontra-se nas redes e mostra Odorico boicotando a chegada das vacinas que irão imunizar a população de Sucupira de uma terrível epidemia. Ao ser questionado por Dirceu Borboleta (Emiliano Queiróz) de que isso pode gerar a morte de centenas de pessoas, ele simplesmente diz o famigerado “E daí?” que Bolsonaro disse diante da repórter que o indagou sobre os milhares de mortos pela Covid. Em seguida, manda um recado ao médico interpretado por Jardel Filho (uma espécie de Mandetta local), dizendo: “Se há vaga de herói nesta terra, essa vaga é minha”.
Mas a cereja do bolo, ou melhor, o jenipapo do licor que deixava as irmãs Cajazeira subindo pelas paredes foi cortada da versão original e só pôde ir ao ar já na série O Bem-Amado, exibida nos anos 80. Trata-se da sensacional explicação de Odorico sobre a função da tal democratura de que ele tanto falava e que, na época de chumbo, os militares censuraram seu significado. Ei-lo: “É um regime que conjumina as merecendências da democracia com os talqualmentes da ditadura. Na democracia, o povo escolhe a gente. Na democratura, a gente escolhe o povo que vota na gente”. Na mosca.
A propósito, ganha uma vacina de vento no bumbum (dizem que dói menos) quem souber o nome de certa pessoa que vive sonhando com tal regime. Uma dica: começa com “b”, termina com “aro” e tem um “o” bem no meio. Vale analogias.
Por Janio Ferreira Soares
Janio Ferreira Soares, cronista, é secretário de Cultura de Paulo Afonso, na margem baiana do Rio São Francisco
PUBLICADO EM: Bahia em Pauta - 28 de fevereiro de 2021
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