O samba no prato de Santo Amaro do Catu

11.12.20


Conheci o samba no prato em minha infância e adolescência nos anos 1980. Ouvia com primas, irmã e às vezes com meu irmão caçula o arranhar do garfo no prato de nossa vizinha em frente à nossa simples casa de verão em Santo Amaro do Catu: bons tempos. Apesar de o santo ser o mesmo, a localidade é outra, fica na Ilha de Itaparica, cidade de Vera Cruz e àquela época já se chama Iiribatuba. Santo Amaro é santo de mais de um lugar. Já preferíamos os acordes da guitarra baiana e outros sambas tocados nas rádios locais. Ao menos não éramos obrigados a ouvir somente enlatados de lá de outros países, às vezes também daqui de outros estados.

O atrito ritmado do garfo no prato era quase estragado pelas vozes desafinadas da turma, que eufórica abafava também o violão e às vezes competia em quase igualdade de condições com o pandeiro e outros instrumentos percussivos. Quanta energia possuíam aquelas pessoas. O trabalho do povo beira-mar sempre foi puxado. Labutar nos manguezais, na maré, catar mariscos, ajustar redes com os gambitos, pescar tainhas, vermelhos, robalos, cacundas, carapicuns e pititingas, garantia alegrias às mesas e forças para o samba. À noite, a brincadeira começava de forma desinteressada.

O casal sentava-se à porta da casa de taipa, mais humilde que a nossa. Ele tragava seu charuto, ela mostrava indispensável mascar o seu fumo. Talvez lá entre umas e outras cusparadas conversassem sobre o início do samba, mas se ela trazia logo seu prato e garfo de estimação, ele pela janela pegava o violão. A precariedade da energia elétrica em nossa rua nos favorecia ao contemplar da lua, ao sorrir da vida alheia. Com a tela da televisão, limitada por uma fração de sua capacidade, ficávamos irritados, afinal ver a imagem cortada seria pior do que não a ver.

Nos rendíamos às imagens em frente à nossa casa. Às vezes por perversidade infantil riamos dos desafinados, escondidos, pois a nossa liberdade vigiada era bem vigiada, e quaisquer queixas seriamos repreendidos. Segundo a tradição da época, o mais velho sofreria as consequências com algumas correções físicas, então o verbo dançar teria outro significado. Eu dancei algumas vezes.

Achávamos estranho aquela história de samba com garfo e prato, mas nos divertíamos com o desafinar. Há algum tempo sabemos do samba no prato de outro território de Santo Amaro. Os toques e as maestrias core garfo e prato são as mesmas. Os músicos responsáveis por empunhar prato e garfo são outros. O desejo de manter viva a tradição parece-nos pulsante. Do samba no prato em Santo Amaro do Catu, guardo boas lembranças. Naquele grupo de gente feliz e trabalhadora o atrito do garfo no prato anunciava que a despensa estava cheia, a pescaria foi boa.


Por Gildeci de Oliveira Leite

gildeci.leite@gmail.com

Escritor, sócio do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, professor da Uneb



PUBLICADO EM: Jornal A Tarde - 06 de dezembro de 2020

IMAGEM DE CAPA: Fernando Vivas/GOVBA




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