O bosque onde minha mãe é manga e Aldir Blanc goiabeira

21.12.20


Embora curado da Covid mantenho um pé atrás, já que o vírus é altamente traiçoeiro, como prova os que estão partindo mesmo depois de recuperados.

A propósito, a Rede de ONGs da Mata Atlântica teve a bela sacada de criar a campanha Bosques da Memória, uma ação de restauração florestal em tributo as vítimas da Covid-19, que pretende plantar mais de 200 mil árvores pelo país. A ideia é que cada muda seja identificada com o nome da espécie e da pessoa morta pelo maldito vírus que, na boa, deveria dar um bom susto nos descrentes.

Um dos primeiros plantados foi Aldir Blanc, que semana passada virou um pé de goiabeira branca em alusão a que havia no quintal de sua infância, onde o mesmo costumava subir, não pra encontrar Jesus, que isso se daria mais tarde, quando ele, apesar de se autodefinir como “rigorosamente ateu, cético, cínico e escroto”, conseguiu com suas letras elevar dezenas de canções ao patamar de verdadeiras homilias de se ouvir rezando.

“Eu subia nela e ficava lá em cima sonhando, lendo Monteiro Lobato e atirando com atiradeira em manga, porque não tinha coragem de matar passarinho”, disse ele numa entrevista, anos depois de escrever numa profética crônica no Jornal do Brasil que um dia voltaria a ela, “que me recolherá definitivamente em seus galhos”.

Pois bem, acho que já contei essa história aqui, mas, por ser quase Natal, o tempo, personagem de uma de suas geniais canções, bate na porta da frente e me leva de volta à velha Glória, lugar onde, aos nomes das árvores, seguiam-se os das pessoas próximas a elas.

Assim, o melhor tamarindo (com um melzinho cobrindo o primeiro caroço), era o do “tamarineiro de Mané Luiz”, cujo pé ficava em sua porta. Já o umbu-cajá que me fazia perder a noção do perigo era o do “umbuzeiro de Abílio de dona Alzira”, que uma vez acertou um tiro de sal desferido de sua pisa-tempero bem na regada de meu primo Paulo, coitado.

Quanto às goiabas, não se discutia; as campeãs eram as de tia Iaiá, plantadas num roçado entre a casa paroquial e a beira do rio, sobretudo as bicadas pelos sanhaços das manhãs.

Mas a campeã em doçura era a manga Ceci, batizada assim por vô Dedé em homenagem a minha mãe, que, voz geral, se não tivesse nascido gente brotaria néctar. Aliás, aqui no meu quintal tem duas descendentes dela, não por acaso as preferidas dos micos e passarinhos, que ao vê-las agem como crianças quando se deparam pela primeira vez com uma árvore de Natal.

Pra findar, o que desejar nesses tempos de brindes virtuais e de um Grinch na presidência? Vale um “feliz vacina a todos!”? Se sim, que ela venha logo pra proteger os milhares de brasileiros que, como a esperança da obra-prima de Aldir, se equilibram na corda bamba de sombrinha e a cada passo nessa linha, podem nunca mais voltar. Timtim!


Por Janio Ferreira Soares


Janio Ferreira Soares, cronista, é secretário de Cultura de Paulo Afonso, na margem baiana do Rio São Francisco



PUBLICADO EM: Bahia em Pauta - 20 de dezembro de 2020

IMAGEM DE CAPA: IvaCastro por Pixabay 

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