O vapor de Cachoeira não navega mais no mar...
5.10.20Há um site na internet chamado “Bahia, terra do já teve”, que reúne 19.200 associados. Eles reproduzem fotos antigas, especialmente de Salvador. Não diria que são saudosistas, senão críticos de mudanças para o pior. Inspirado no site, resolvi escrever sobre o que a Bahia já teve.
As primeiras máquinas a vapor foram introduzidas na Bahia em 1810, pelos senhores de engenho Pedro Rodrigues Bandeira e Felisberto Caldeira Brant Pontes. Eles dois e Manuel Bento Pontes, de Jaguaripe, reinventaram o navio a vapor em 1819 adaptando uma dessas máquinas a um velho barco no estaleiro da Preguiça. O vapor de Cachoeira virou lenda, música popular e caxixi tripulado por diabos, em Maragojipinho.
A primeira companhia com o nome de Companhia Baiana de Navegação a Vapor foi fundada, em 1836, por João Diogo Stirtz, testa de ferro de capitais ingleses. A empresa não cumpriu suas obrigações e foi substituída por outras britânicas administradas pela Companhia Ingleza Bahia Steam Navegation Company Limited, que fracassaram. O espólio da Baiana foi assumido, em 1882, por empresas nacionais que se sucederam e também faliram. Em 1905, o governador José Marcelino a estatiza e, além de manter as linhas dentro da Baía de Todos-os-Santos, cria linhas para Belmonte e para cidades mais distantes, como Aracaju, Penedo e Maceió.
Quando Octávio Mangabeira assumiu o governo, em 1947, decidiu modernizar a Navegação Baiana e convidou um jovem engenheiro-mecânico para dirigi-la. Oscar Caetano da Silva era um entusiasta da mecânica celeste, a mecânica sem atrito. A Baiana funcionava bem e fui com ela uma vez a Cachoeira e muitas vezes a Itaparica nos navios Nazaré, Belanizia, Mascote e João das Botas. Mangabeira mandou Caetano aos EUA para acompanhar a fabricação de um navio para fazer a rota do Rio de Janeiro. Caetano optou por adaptar o casco de um contratorpedeiro da última guerra a paquete. Quando voltou trouxe na bagagem um Ford que agonizou num galpão da Escola de Belas Artes, onde era professor e pintor, porque não tinha licença de importação.
O navio batizado de José Marcelino era um cabrito no mar. A explicação era simples, os contratorpedeiros são projetados como os joão-paulinos para ficarem sempre de pé. Se um navio recebe uma vaga lateral, à deriva, deve voltar rapidamente para o prumo e resistir às vagas subsequentes. O José Marcelino fez umas duas viagens para o Rio e foi a leilão como ferro velho em 1951. A vida de Caetano virou um inferno. Passageiros reclamavam que vomitavam o tempo todo, os navios quebravam, o de Cachoeira encalhava em bancos de areia, o estaleiro flutuante Araújo Pinho naufragou e não foi substituído e os funcionários faziam greve.
Quando Oscar Caetano se aposentou, afirmou do entusiasmo que teve com o convite de Mangabeira, pois ele queria aplicar na empresa os conceitos da mecânica sem atrito, mas após alguns meses descobriu que na Navegação Baiana não havia mecânica, só atrito.
Paulo Ormindo de Azevedo
Arquiteto, professor titular da Ufba
PUBLICADO EM: Jornal A Tarde, 04 de outubro de 2020
IMAGEM DE CAPA: Blog Vapor de Cachoeira
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