O encontro do papa com o poetinha de Oxalá
15.10.20Ainda é madrugada de domingo, 4 de outubro, quando os primeiros fogos em homenagem a São Francisco estouram nas proximidades do Bico de Pedra, local onde se concentram as embarcações que sairão em procissão escoltando a imagem do santo pelas águas do rio que leva seu nome.
Aproveitando o amanhecer sem vento e a paz que precede o alarido dos pardais, uso a técnica de contar nos dedos a distância que separa os relâmpagos dos trovões e tento aplicá-la entre o clarear das bombas e a efetiva chegada dos tiros aos meus ouvidos, porém, fracasso. Teimoso, insisto e vou ao o Google Maps e aí ele traça uma linha de 3,5 km até o foguetório, coincidentemente passando por cima do Terreiro de Mãe Neta e do Abassà da Deusa Òsùn de Idjemim, como se me mandando um sinal do que estava vindo do Vaticano, mais precisamente num dos parágrafos da nova encíclica que o papa resolvera publicar bem no dia do santo que também lhe empresta o nome. Simbora.
Com o Sol clareando os primeiros poemas que a Primavera declama sobre as acácias e os ipês, eis que vejo a seguinte manchete: “Em nova encíclica, papa Francisco cita Vinicius e defende fraternidade contra injustiças”. De cara, não acreditei que o Vinicius em questão fosse o mesmo do uísque, dos terreiros e das poesias, ainda mais servindo de referência num documento oficial assinado pela maior autoridade católica depois de Cristo. Mas aí, quando vi que era realmente o nosso poetinha, pude então confirmar que o papa argentino, definitivamente, é uma rês desgarrada das manadas celestiais.
Intitulada “Fratelli Tutti” (“Todos Irmãos”, em italiano), a nova encíclica trata, entre outras coisas, das injustiças do capitalismo global e do surgimento de nacionalismos agressivos aos mais vulneráveis, além de apostar todas as fichas na boa convivência das diferentes culturas, ocasião em que Sua Santidade pesca na letra que Vinicius fez para o Samba da Bênção (musicada por Baden Power), a frase: “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida”.
Impossível saber ao certo o momento em que ele lembrou-se dessa canção para citá-la em sua encíclica. Mas, se assim o fez, foi porque a conhece na ponta da língua, o que me leva a imaginá-lo num velho calção de banho, bebericando um vinhozinho e cantando com “o branco mais preto do Brasil”, que é melhor ser alegre que ser triste, que a alegria é a melhor coisa que existe, é como uma luz no coração.
No fim, antes do último gole, nosso hermano ergue um solitário brinde ao capitão do mato, poeta, diplomata e filho de Oxalá, se benze e vai dormir sem ao menos rezar, pois sabe que o samba quando vem lá da Bahia, cheio de feitiço e de poesia, nada mais é do que uma bela forma de oração. Saravá, velho pontífice!
Por Janio Ferreira Soares
Janio Ferreira Soares, cronista, é secretário de Cultura de Paulo Afonso, na beirada baiana do Rio São Francisco.
PUBLICADO EM: Bahia em Pauta - 11 de outubro de 2020
IMAGEM DE CAPA: Opus Dei Communications Office on VisualHunt.com / CC BY-NC-SA
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