Se minha aldeia fosse um país
30.9.20Não sei se você já ouviu falar de Sealand (ou terra do mar, numa tradução livre). Trata-se do menor país do mundo e sua história, conheci recentemente, é tão pitoresca quanto inspiradora.
Tudo começou em 1965, quando Paddy Roy Bates, um ex-major do Exército britânico que se tornou pescador, resolveu seguir a moda das emissoras piratas instaladas na costa inglesa e fundou a Rádio Essex. Acontece que o governo inglês, incomodado com o crescente sucesso das mesmas, criou a Lei de Crimes de Transmissão Marítima, com o único objetivo de fechá-las.
Diante disso, Bates lembrou-se de uma plataforma antiaérea abandonada no Mar do Norte desde a Segunda Guerra e aí transferiu seu equipamento pra lá, sem nem imaginar (pelo menos num primeiro momento, creio) que naquela véspera do Natal de 1966 estava se apossando de um território de 4.000 m² a apenas 12 quilômetros da costa e, melhor ainda, localizado em águas internacionais fora do alcance da lei antipirataria.
E assim, no dia 2 de setembro de 1967, nove meses após a invasão, Bates aproveitou o aniversário de sua esposa e fundou oficialmente o Principado de Sealand, cujo lema “E Mare, Libertas” (ou “Do mar, liberdade”), traduz toda sua luta pra manter a Rádio Essex cortando os céus da Grã-Bretanha.
Confesso que se eu tivesse descoberto essa história no início da pandemia, teria aproveitado o embalo e procurado alguma brecha na Constituição que me permitisse transformar as tarefas da terra onde vivo numa nação independente, fato que me traria, entre outros benefícios, a indescritível alegria de me livrar de um presidente totalmente impregnado dos principais defeitos que um ser humano precisa ter pra tornar-se um pulha supremo. Dito isto, tergiverso e ponho-me a imaginar alguns detalhes de como seria meu suposto condado.
Pra começar, sua privilegiada localização sobre o Riacho da Morena, exatamente na divisa entre Paulo Afonso e Nova Glória, daria a este ateu de meia-tigela a tranquilidade de saber-se protegido das ziquiziras do mundo, tanto por São Francisco de Assis quanto por Santo Antônio da Glória, ilustres padroeiros das respectivas cidades e figuras das mais veneradas nas quebradas terrestres e celestiais.
Com a segurança garantida e acabando meu espaço, só me resta escolher um hino condizente com o histórico do meu pedaço, cujos versos, além de belos, teriam de ser cantados por uma voz que ao mesmo tempo repelisse os reaças e despertasse a sensibilidade dos mortais. Neste caso, pediria licença a Nelson Ângelo pra que a sua Fazenda, com Milton Nascimento louvando a bica no quintal, os sabiás, as mangas-rosas e o sol da manhã fosse o cântico oficial do meu país, tocado sempre que a Lua, em qualquer fase, traçasse no céu um compasso. Viva Bituca!
Por Janio Ferreira Soares
Janio Ferreira Soares, cronista, é secretário de Cultura de Paulo Afonso, na beirada baiana do Rio São Francisco.
PUBLICADO EM: Bahia em Pauta, em 27 de setembro de 2020
IMAGEM DE CAPA: Kerstin Riemer por Pixabay
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