OS SINOS DA MATRIZ E OS SERVIÇOS DE ALTO FALANTE ERAM OS RELÓGIOS DA CIDADE
11.9.20Com a chegada da velhice, a cada ano que se passa, fica-se mais saudosista e as lembranças do passado, tempo que não volta mais afloram. Tem um cantinho da memória, enquanto é-se lúcido, que não deixa a borracha do tempo apagar.
No meu tempo de menino, década após o fim da II Guerra Mundial (1945/1957), poucas eram as pessoas que possuíam relógios de pulso. As mulheres só os usavam nos dias das missas e dos cultos evangélicos, em datas festivas, aniversários e casamentos. Era raro vê-se alguma no dia-a-dia portando-os. Relógio era uma espécie de joia.
Os homens, alguns os tinham. A maioria usava os relógios de bolso fabricados pela primeira vez em Nuremberg, Alemanha, em 1504 (o ovo de Nuremberg).
Indicavam, inclusive, o status das pessoas. Um folheado a ouro 18 kilates “Patek Phillip” com aquela corrente de ouro exposta fora da calça ou do bolso do jaquetão indicava que o camarada era rico. Um mais modesto, de prata, um Longines, indicava outro status.
Nas calças dos homens - as mulheres não usavam calças compridas nessa época - havia um bolsinho na altura da virilha onde se colocava o relógio e a corrente trespassava até o bolso maior da calça.
Havia nas casas e em estabelecimentos comerciais os relógios de paredes, a maioria importada dos EUA, e os relógios de móveis em madeira e louça. Era dessa forma que se regulava os horários na cidade.
Mas, de fato, quem marcava as horas de uma forma mais ampla, eram os serviços de alto falantes - Comercial e A Voz do Sertão - e os sinos da Igreja Matriz de Sant'Anna. Esses, sim, eram pontuais e indicavam o meio dia e às 18 horas ou horário da Ave Maria. Além dos sinos da matriz havia ainda o apito do trem noturno que sinalizava a meia noite.
Serrinha, no dizer popular, era um ovo. Da balaustrada do chalé de meu avô e depois de meu pai, onde morávamos, podia-se ver o fim da cidade no lado do cemitério do padre e do outro lado o morro da fazenda de Samuel Nogueira. No Norte, era mato, o sítio do meu avô; e ao Sul era a estação do trem que não dava pra ver porque ficava numa baixada.
O comércio se limitava a Praça Luís Nogueira, Rua Direita, Beco da Lama, um pouco na Barão de Cotegipe, Largo da Federação e rua do Mercado Municipal, inaugurado em 1950.
Meu pai possuía uma livraria e tipografia "O Serrinhense" na Praça Luís Nogueira. Do lado direito ficava o Bar Itaúna, de Edmundo Veloso, depois a loja de Wilson Ramos, e em seguida a Farmácia do Povo, de Sêo Cosme; do outro lado, a loja dos irmãos Bacelar, Almiro e Zé; a casa de Antônio José Araújo e a Farmácia de Sêo Paulino Bieta. E, em frente, a loja de peças e de querosene de Sêo Demá, as lojas de Miguelzinho dos Tecidos, de João da Ema, de Zé Faustino, de Sêo Juca Cândido, de Vadinho, o Ciclamen e outros.
Quando dava meio dia Zé Sacristão mandava tocar 12 badaladas nos bronzes, ainda hoje, na mesma torre da matriz. Blém...blém... blém... doze vezes.
Meu pai tinha 5 operários na tipografia e mais minha tia Dalva Paes no balcão da livraria. Nas primeiras badaladas, minha tia fechava as portas da loja e os operários paravam as máquinas, movidas a pedal. Todos iam para suas casas almoçar. Quase todo o comércio fechava. Só ficavam aberto os bares, o mercado e os snokeres. Não havia restaurantes nem supermercados.
Nas escolas também era assim. Eu estudava na Agripino Barbosa. Tocou o sino da igreja a professora Edna Santos encerrava a aula.
Meu pai ia pra casa, almoçava com todos da família na mesa e depois puxava uma 'siesta' numa cadeira espreguiçadeira da sala. Quando o relógio da parede lá de casa marcava 13h30min, que todo mundo só falava uma e meia da tarde, apenas uma badalada, ele levantava, passava água no rosto e descia para seu comércio.
Às duas da tarde, todo o comércio já estava aberto e quando dava 6 da noite os sinos da igreja tocavam seis badaladas ...blém...blém...blém e o comércio voltava a fechar suas portas só abrindo no dia seguinte.
Entenda-se comércio de uma forma mais ampla - também serviços, dentistas, bancos, escritórios, etc. A cidade, literalmente, morria. Depois das 6 horas da noite, quando os serviços de alto falantes executavam a canção de Peter Schubert, aquele canto lamurioso operístico, 'Aveeeeé Mariaaaa' a população ia para suas residências.
Claro que havia pontos de diversão - os snokers, o brega (Coréia), os seresteiros e os boêmios que se concentravam no Bar de Romão, no Jardineiro, no Beco da Lama e no Cabaré de Viana.
Como não havia poluição sonora diz-se que os sinos da matriz eram ouvidos em alguns povoados e distritos, estes também regulavam seus horários pelas sinetadas.
Os sinos da matriz também chamavam para as missas aos domingos e nos novenários de Maria e de Sant'Anna (padroeira da cidade), em maio e julho, e aí as badaladas eram diferentes.
Para as missas o chamamento começava às 7h com bléns...bléns...bléns ritmados. Quando dava 7h30min o ritmo ficava mais intenso bléns..bléns...bléns...bléns, como uma carretilha. As pessoas já sabiam: a missa está perto de começar e aqueles que eram católicos se dirigiam a igreja.
Faltando 5 minutos para às 8h aí era blém...blém...blém...com toda força nos dois sinos. A missa iria começar. Os toques nos dois sinos era uma arte.
Os sinos também badalavam na hora da eucaristia e nos finais das missas. Toques diferenciados. O toque da eucaristica era compassado, triste; e do final da missa, alegre, 'scatato' em italiano, disparado.
Quando uma autoridade ou pessoa católica influente morria - um comerciante, um fazendeiro, um cristão frequentador dos cultos - os sinos badalavam vagarosos ...blém...blém...blém... com batidas espaçadas, isso fora dos horários do meio dia e das seis da noite.
A gente já sabia. Sino batendo fora de hora dessa forma. Hic! morreu alguém. A notícia se espalhava logo pelas famílias no boca-a-boca até que o serviço de alto-falante fazia o anúncio fúnebre e o convite para o sepultamento.
Os sinos só tocavam às noites nos novenários de Maria, de Sant'Anna, na Semana Santa e no Natal, na tradicional missa do galo.
Foi assim no meu tempo de menino e por longos anos até que o relógio de pulso se popularizou, o comércio cresceu e passou a ficar aberto o dia todo e chegou a primeira rádio em 1969. Mas aí eu já estava adulto.
Link da publicação original: https://www.bahiaja.com.br/cultura/noticia/2020/09/09/no-meu-tempo-de-menino-sinos-da-matriz-de-santanna-marcavam-as-horas,128040,0.html
IMAGEM DE CAPA: Imagem de Thomas Pautz por Pixabay
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