A coragem de Júlia e a estante de Caetano

28.9.20



Não sei se foi algo totalmente planejado, mas desconfio que quando Paula Lavigne convenceu Caetano a fazer sua famosa live, deve ter pensado, com seu faro empresarial: “agora o importante é preparar uma puta estante como cenário, mesmo que ela humilhe as dos jornalistas e entrevistados da GloboNews”.

Assim, quando Caetano surgiu com gel no cabelo, estilo “vovô acabou de tomar banho e tá bem cheirosinho!”, parte da internet parou, tanto pela qualidade do repertório, quanto pelas vistosas prateleiras repletas de objetos calculadamente escolhidos e estrategicamente encaixados entre os quatro costados dos Velosos, fato que até mereceu matérias do tipo: “o significado das obras na estante de Caetano”.

E em meio a algumas iscas fáceis (caixas de CDs de Tom Jobim, Chico e Gil, fotos de discos de Bethânia, uma Bíblia Sagrada – por precaução, creio), foi essencial a ajuda de especialistas nas preferências do filho de dona Canô (e da Chiquita Bacana, assovio agora) para descobrir, por exemplo, um livro do fotógrafo peruano Mario Testino sobre o Rio de Janeiro – com texto de Caetano -, um filme de Wim Wenders sobre sua amiga e coreógrafa alemã Pina Bausch, além de um livro intitulado An Invincible Memory, nada mais do que uma edição em inglês de Viva o Povo Brasileiro, obra-prima do nosso João Ubaldo, certamente lido numa sentada só pelo velho baiano very very foda.

Mas as duas peças mais emblemáticas da noite estavam a emoldurar o rosto do aniversariante do dia. A primeira, intitulada “New Brazilian Flag” (ou Nova Bandeira Brasileira) é uma releitura da nossa bandeira feita pelo artista plástico carioca Raul Mourão, onde o círculo que contém o céu, as estrelas e a faixa escrita Ordem e Progresso, está completamente oco. A outra é o Ofá de Oxóssi, arma sagrada de seu orixá, presente do artista plástico baiano Alberto Pitta, fundador do Cortejo Afro, bloco que o homenageou no Carnaval de 2018.

Pois bem, você deve estar se perguntando o porquê deste ribeirinho escrever sobre esse tema só agora. Acontece que esta semana tive a imensa alegria de abrir espaço em minhas prateleiras pra colocar uma maravilha em forma de caixa, que se chama Tão a Gente (@taoagente).

Trata-se de um projeto criado com a finalidade de auxiliar pessoas com transtornos de ansiedade, como é o caso de sua criadora, minha filha Júlia, que em plena pandemia deu a cara a tapa e resolveu enfrentar e compartilhar seus medos, criando uma bela maneira de se ajudar e também ao próximo.

Ah, nem adianta procurar pela caixa de Júlia na estante de Caetano, que ela não tá lá. Já quiçá Moreno, pela música que seu pai fez quando ele ainda estava na barriga de Dedé, talvez queira conhecer o trabalho da dona do nome que ele teria se tivesse nascido mulher.


Por Janio Ferreira Soares


Janio Ferreira Soares, cronista, é secretário de Cultura de Paulo Afonso, na beirada baiana do Rio São Francisco.


PUBLICADO EM: Bahia em Pauta, em 13 de setembro de 2020

IMAGEM DE CAPA: StartupStockPhotos por Pixabay

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