Reflexões e perdas na quarentena

28.8.20


Nunca, na história, os humanos viveram experiência tão partilhada como a partir do segundo trimestre deste pandêmico ano de 2020, no que se refere ao intenso e universal isolamento social, variando, apenas, o que fazer de cada qual. O nosso, meu e de minha mulher, Lídice, tem sido o mesmo: leitura, malhação, escrever, longas sessões cinematográficas, papos a dois, regados a vinho, e em eventuais recepções de um ou outro, bem como, à distância, com filhos, netos e muitos amigos distribuídos por toda parte. Quebrando de modo doloroso essa rotina forçada, a notícia da perda de entes queridos, os últimos dos quais Elsimar Coutinho, no dia 17, e de Maria Luiza Câmera, no dia 19 do corrente.

Cada um, a seu modo, Elsimar e Luiza, dignificaram e conferiram brilho à sua passagem sobre a terra, um lapso existencial que tanto faz os noventa anos vividos por Elsimar, como os 75 de Maria Luiza, são “um momento de angústia ao longo da existência do ser”, na perspectiva dura mas verdadeira do pensamento existencialista, de Sören Kierkegaard a Jean Paul Sartre. O que importa, portanto, é o valor da obra que deixamos em nossa meteórica passagem sobre a Terra, domínio em que os dois pranteados amigos exceliram.

Da perda de Elsimar, precedida de longa e intensa vigília da busca de sua recuperação pela melhor medicina, o mundo deu e continuará dando conta, semanas, meses e anos afora. A qualidade de sua contribuição, no campo da reprodução humana, é universalmente reconhecida. Registro como um momento rico de minha biografia, o concorrido e histórico depoimento que deu na Academia de Letras da Bahia, em outubro do ano passado, como parte do programa Trajetória de uma vida, uma súmula pedagógica e inspiradora para os que queiram ampliar os limites de suas possibilidades. Ali, rodeado de mulher, irmãos, filhos, netos e amigos queridos, o eminente cientista Elsimar Coutinho resumiu o que disse em seu último e antológico livro Janelas Fechadas, Portas Abertas, mas o fez de um modo em que o calor da proximidade física nos permitiu auscultar o bater de seu vibrante coração.

A itabunense Luiza Câmera, nascida no apogeu da lavoura cacaueira, graças ao vigor de sua mente prodigiosa, transformou o revés de sua saúde - a contração precoce da incurável e autoimune doença de Still - uma queda mortal, para muitos - “num passo de dança”, “levantando-se, sacudindo a poeira e dando a volta por cima”, comprovando, como o fez de modo exemplar o britânico Stephen Hawking, que as grandes pessoas, como as águas, ganham força na queda. Por isso, Luiza introjetou e repetiu à saciedade, como um mantra, um marco em sua vida, como mecanismo de aumento, preservação e restauração de sua higidez emocional, a frase que o ortopedista Campos da Paz disse sobre ela, ao deixar o Hospital Sarah Kubitschek, depois de quatro anos de tratamento, em Brasília: “O corpo de Luiza não aguenta sua extraordinária cabeça”.

A Associação Baiana dos Deficientes Físicos, Abadef, localizada no passeio Público, atrás do Palácio da Aclamação, endereço que transformou numa extensão de sua residência, foi o palco sobre o qual Luiza fez de sua vida o instrumento de uma luta, de alcance nacional, em favor dos desfavorecidos por injunções físicas. Tanto que recebeu, do Senado da República, a Comenda Dorina de Gouveia Nowill. Nem as crônicas inflamações do corpo, nem os desgastes progressivos em suas articulações que a levaram a perder os movimentos das pernas foram desculpas, legítimas, sem dúvida, para deixar-se imobilizar. Triunfante e otimista, na contramão dos que se abatem pelo infortúnio, inclusive familiares mal formados e mal informados que se envergonham dos seus entes queridos, que são portadores de limitações físicas, Luíza testemunhou, de modo inspirador: “Achavam que eu não conseguiria ter filhos e casei, tive duas meninas. Hoje só vou ao médico fazer checape uma vez por ano, tenho todas as taxas excelentes”. Ela fundou, também, o Bloco Me Deixe em Paz que há um quarto de século amplia a inclusão dos que participam do carnaval de Salvador. Luiza registrou o seu legado nos livros Não se cria filho com as pernas e Mulher da vida, ambos de caráter, predominantemente, memorialístico.

Que grande exemplo de afirmação existencial para quantos, sobretudo aqueles dotados de largas posses, que aceitam como determinismo existencial, a subjugação do espírito às dimensões e circunstâncias da conjuntura corporal.

Duas vidas, passageiras em suas dimensões físicas, mas eternas pela significação do seu legado.


Por Joaci Góes



ARTIGO PUBLICADO ORIGINALMENTE EM: Jornal Tribuna da Bahia, 27 de agosto de 2020

IMAGEM DE CAPA: Imagem de Yuri_B por Pixabay

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