Mil vivas a Morricone e ao bico da ema

18.7.20



Em meados dos anos 60 eu tinha mais ou menos a idade de Totó, aquele garotinho que azucrina a vida de Alfredo, projecionista do Cine Paradiso, para que ele lhe dê alguns pedaços das fitas quebradas ou censuradas pelo padre Adelfio, pra depois vê-las através da chama de uma vela, conferindo-lhes enredos que só o olhar infantil pode conceber.

Na época, eu ainda morava em Glória e vibrava quando me sentava no banco traseiro da Rural de seu Daniel antes de partir rumo à vizinha Paulo Afonso, onde, além das novidades eletrônicas da casa de minha querida tia Santinha (uma radiola Phillips cheia de discos de 45 e 78 rotações, uma TV Colorado exibindo fascinantes chuviscos azuis e um imponente telefone preto pra falar com quase ninguém), existiam mais umas três maravilhas na cidade que me fascinavam.

Uma era a Livraria Sedução, onde me abastecia de gibis e revistas que depois seriam lidos sob os tamarineiros da praça de minha aldeia, e as outras eram os Cines Palace e São Francisco, templos sagrados onde conheci Brigittes, Lollobrigidas, Cardinales e, sobretudo, os faroestes italianos com suas empolgantes trilhas sonoras, que até hoje acompanham este velho escriba em seus solitários galopes noturnos.

E é com a língua avermelhada pelo corante do picolé de groselha da Sorveteria Botijinha, que me vejo correndo pra casa depois de assistir - pela segunda ou terceira vez - algum dos faroestes de Sergio Leone (Por um Punhado de Dólares, Por uns Dólares a Mais, Três Homens em Conflito e Era Uma Vez no Oeste), só pra decorar as partes que faltavam de algumas músicas, pra na volta dividi-las com amigos que varavam as madrugadas comigo entre violões e rádios de pilha, todos atentos à fumaça branca que a qualquer momento poderia sair da chaminé da padaria de seu Ulisses, avisando que: “habemus pão quentinho!”.

Acho que não é nenhum exagero dizer que mais da metade do sucesso desses filmes se deve às geniais canções compostas pelo maestro Enio Morricone, cuja recente morte, guardada as devidas distâncias entre o Raso da Catarina e a Piazza Navona, provocou em mim algo semelhante ao que aconteceu com Totó, quando, já adulto, soube da morte de Alfredo.

E aí, num fraternal agradecimento àquele que me mostrou que acordes de flautas, clarins, oboés e ocarinas têm o dom de transformar duelos e cavalgadas em cenas de quase poesia, abri um chianti barato e botei pra rodar a cena final de Cinema Paradiso, aquela em que Totó finalmente assiste aos beijos que ele não pôde ver quando criança, tudo, é claro, sob a genial batuta de Morricone a reger cordas, metais e lágrimas.

Pra terminar, dizem que a ema que bicou Bolsonaro é prima carnal da que gemeu no tronco do juremá. Será um sinal de São Jackson do Pandeiro? Oremos!




Janio Ferreira Soares, cronista, é secretário de Cultura de Paulo Afonso, na beira baiana do Rio São Francisco e gentilmente cede seus textos para nós, amigos aqui do blog.

ARTIGO PUBLICADO ORIGINALMENTE EM: A TARDE
IMAGEM DE CAPA: Jânio Soares, ASCOM, Prefeitura Municipal de Paulo Afonso, Bahia.


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