Incidente no Anjo Azul
26.7.20Fui pela primeira vez ao Anjo, em 1965, em companhia de Sílvio e Lia Robatto. Era verdadeiramente uma "cave". Se na cidade era só repressão, lá dentro era só liberdade, ou mesmo transgressão. O Anjo Azul logo se transformou num point de vanguardistas, boiolas, liberadas e cabeludos, que escandalizava os conservadores da paróquia. Já tínhamos, naquela época, um capitão famoso responsável por zelas pelos bons costumes. Era um oficial que realizada serviços (à paisana) para o governador Juraci Magalhães.
Ainda me lembro daquela visita. Ao invés dos dolentes boleros do Tabaris, em que casais dançavam queixo-no-queixo, ali, o som altíssimo tocava um rock n'roll provocador da Jovem Guarda: "Quero que vá tudo para o inferno". Vi pela primeira vez num salão social uma dança tribal em roda, em que ninguém-era-de-ninguém.
Num julho passado, o capitão fora escalado para aplicar um "corretivo" no Anjo Azul. Chegou à noite com três robustos milicianos à boite, que estava fechada, mas que tocava música lá dentro. Bateu na porta e o dono, Pedreira, reconhecendo o coronel, explicou, educadamente, que a boite estava fechada ao público, porque um grupo havia alugado o local para uma comemoração. O capitão não gostou de ser confundido com "povinho" e disse que poderia invadir e fechar aquela merda definitivamente. Diante da ameaça, o bom samaritano optou pela conciliação. Pediu um momento, foi lá dentro e voltou dizendo que iria abrir uma excessão e eles teriam uma mesa, mas que procurassem não interferir na festa.
O grupo sentou, mas logo reclamou da demora em ser atendido. O garçom veio e eles pediram umas "bias". Quando a cerveja chegou, denunciaram que estava quente e disseram, em voz alta, que não estavam gostando nada daquela espelunca escura, com uns veados falando uma língua que eles não entendiam. Pedreira foi até a mesa e disse que tinha o prazer de os receber, mas, por gentileza, falassem mais baixo. O capitão não tolerava desacato à autoridade e o derrubou sobre uma mesa. Seus auxiliares quebraram uma cadeira e com os pés começaram a bater em todo mundo. A porrada se generalizou. na porta, o capitão apitou e apareceu um camburão que levou todos para uma delegacia. No dia seguinte os jornais estampavam: "Famílias de diplomatas do Consulado Americano espancadas quando festejavam o Independence Day, bebericando xixi de anjo".
Por Paulo Ormindo de Azevedo
Arquiteto, professor titular da UFBA
pauloormindo@gmail.com
Texto publicado originalmente no Jornal A Tarde, em Salvador - Bahia.
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