CRÔNICA: O sonho brasileiro da neve, e a magia do Lord Cigano fazendo nevar no Nordeste

7.7.20


Está nevando no país do Lorde Cigano.

Vendo essa empolgação de repórteres e turistas com a chegada de uma neve de araque no Sul do país, lembro-me da cena inicial de Bye, Bye, Brasil, filme de 1979 de Cacá Diegues, quando um velho caminhão chega na cidade alagoana de Piranhas, aqui pertinho, com uma boca de alto-falante em cima e os Fevers cantando “ioiô, ioiô, ioiô, ioiô, preso por um fio estou”, acompanhado da inconfundível voz de José Wilker, anunciando: “atenção senhores e senhores, digníssimas autoridades civis, militares e eclesiásticas; depois de prolongada ausência devido a compromissos em São Paulo e no Sul do país, está de volta a esta progressista cidade do sertão a Caravana Rolidei, que tem o orgulho de apresentar ao seu distinto público suas grandes atrações: o fabuloso Andorinha, o rei dos músculos; a internacional Salomé, a rainha da rumba; e o extraordinário e inimitável Lorde Cigano, o imperador dos mágicos e videntes” – sem dúvida um dos mais geniais personagens do fantástico Wilker.

À noite, nosso ilusionista charlatão entra no picadeiro e diz: “e agora, em caráter absolutamente extraordinário, e em homenagem ao distinto público desta fabulosa cidade, eu, Lorde Cigano, o mestre dos sonhos, vou atender ao maior e mais íntimo desejo de cada um de nós brasileiros”, para, em seguida, perguntar: “qual é?, qual é?”. “Muita fartura e progresso”, responde o prefeito, comendo um prato de tapioca. “Ser eterno”, diz um outro. Com a malandragem dos cínicos, Lorde divaga: “ser eterno… nenhum mágico, por mais porreta, jamais conseguiu e nunca vai conseguir fazer a mágica de não morrer. Mas eu, Lorde Cigano, guia das nuvens e do tempo, posso fazer milagres com a vida e posso tornar real o sonho de todos os brasileiros: eu posso fazer nevar no Brasil”. E aí, depois de dizer as palavras mágicas “Para Vigo Me Voy!” (que na verdade é o título de uma famosa rumba que na sequência embala a dança de Salomé), começa a nevar ao som de White Christmas, para júbilo do prefeito, que grita: “tá nevando no sertão!, tá nevando na minha administração!”. “Sim!”, confirma Lorde Cigano, “está nevando no sertão… como na Suíça, na Alemanha, La France… como na velha Inglaterra – saudade! -, como na Europa em geral”. E conclui, diante de deslumbrados espectadores ensopados de coco ralado e isopor: “agora, como em todo país civilizado do mundo, o Brasil também tem neve”.

Pois bem, 38 anos depois, anda fazendo 16 graus no meu quintal. Me sentindo quase europeu, ligo a TV e já tenho a sensação de ver Ângela Merkel no lugar de Gleisi Hoffmann; Macron no de Michel; e o ex-presidente François Hollande sendo condenado por um tríplex na Riviera Francesa. Pardon, periferia, mas já me voy ao Louvre comer um cassoulet e tomar um Bordeaux. Au revoir!

Vale a pena lembrar de um tempo em que no Tabariz o som era que nem os Bee Gees.



Bye Bye Brasil, 1979, de Cacá Diegues, com José Wilker e Betty Faria


Janio Ferreira Soares, cronista, é secretário de Cultura de Paulo Afonso, na beira baiana do Rio São Francisco e gentilmente cede seus textos para nós, amigos aqui do blog.


ARTIGO PUBLICADO ORIGINALMENTE EM: Bahia em Pauta
IMAGEM DE CAPA: Jânio Soares, ASCOM, Prefeitura Municipal de Paulo Afonso, Bahia.


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