Eu, o fusca de meu pai e Papai do Céu

24.6.20


Não adianta. Volta e meia lembro de alguma pisada de bola do meu passado. E, como sempre, o meu pai era (contra sua vontade), ativo personagem do ocorrido.

Quando eu falava em dirigir, meu pai, para quem não lembra, jogo duro, dizia: esqueça! Só quando completar 18 anos, e se merecer!!! (aí era covardia; merecer era a parte mais difícil, para não dizer, impossível!).

Mas, Deus existe, e minha mãe resolveu aprender a dirigir!

O velho havia vendido o seu Chevrolet Bel Air 1956, e com os recursos apurados, comprou dois automóveis (como se dizia à época): um fusca e uma Kombi. Era importante minha mãe aprender a dirigir pois ela poderia ajudá-lo nas entregas de alguns produtos que ele comercializava, além de fazer as compras da casa, etc.

Procurou se informar quem era um bom instrutor, e o contratou; homem sério e competente.

Combinaram tantas aulas por semana, coincidentemente  no turno que eu não estava na escola. Eu tinha então uns 14/15 anos, se tanto. Pedi a minha mãe, que me deixasse assistir as aulas, e assim, lá ia eu no banco de trás, prestando toda atenção.



Embora nunca tivesse pego no volante, quando minha mãe completou o curso, eu me senti pronto também, embora tivesse faltado algumas aulas, a bem da verdade!

O problema agora seria a minha estreia como motorista, uma vez que a resposta às minhas súplicas, era sempre a mesma: NÃO!

Eis que, num belo dia de sábado, teve um almoço barra pesada lá em casa, e meu pai, depois de uns tantos pratos fundos e varias louras geladas, capotou.

Há muito o plano já estava concebido, faltando apenas a ocasião apropriada, para sua realização. 

Minha mãe já estava acabando com a arrumação da cozinha, quando eu, pé-ante-pé, adentrei no quarto de meus pais, e com a mão tremula, afanei as chaves do carro no bolso da calça que estava pendurada no cabide.

Mais um pouco, a minha velha também foi ao encontro de Morfeu, e eu, após verificar que os demais moradores da rua também estavam recolhidos, entrei no fusca, liguei o motor, e.......pronto! saí como um canguru, aos pulos!!!! Só lembrava do instrutor dizendo a minha mãe para tirar o pé da embreagem devagar, mas, a ansiedade era tanta que esqueci deste detalhe! 

E aí fui em frente. Sai da rua, dobrei a direita e fui para um bairro próximo, com direto a descida e subida de ladeira.  Na hora que cheguei no plano, e olhei para o final da rua, gelei. Era fim de linha de ônibus, e tinha mais coletivos que eu suportaria enfrentar. 

Então, resolvi retornar do meio da rua mesmo. Virei volante para a esquerda, fiz a meia lua, e depois, engatei a ré! De novo o pé saiu mais rápido do que devia da embreagem, e atingi em cheio o muro de uma casa que desabou na hora!

PQP! Me ....! Me .....MESMO!!!! 

Primeira marcha e voei para casa. Parei o carro no mesmo lugar que estava, pois para minha sorte, nenhum filho de Deus havia ocupado a vaga, fato este que me escapou no planejamento inicial. Peguei uma flanela que tinha no porta-luvas, limpei as digitais (hahá!!!) , e o local da colisão mural!

Fui experimentar abrir a tampa do motor, que no fusca fica na traseira, e nada.  A porrada empurrou o para-choques para a frente e a tampa não abria. 

Gelei, mas, como nada mais podia fazer, devagarinho abri a porta do quarto dos meus amados pais que dormiam profundamente (meu pai roncava tanto que eu ouvi da porta da entrada), e repus o chaveiro no bolso da calça.

Daí era rezar e pedir a Deus um milagre (o garantido seria uma surra!).

No dia seguinte, como todos os domingos, íamos todos à missa, na Igreja de Santo Antônio Além do Carmo! Eu e minhas irmãs no banco de trás, meu pai ao volante e minha mãe no carona.

No caminho da igreja, meu pai sempre parava o carro na banca que tinha na Quitandinha do Capim, e comprava o jornal.  

Eis que, Papai do Céu aproveitou para corrigir o meu mal feito.

Meu pai passou da banca, e lembrou do jornal. Ato contínuo, engrenou a marcha-a-ré e.......PÔ! Bateu em um carro que estava chegando atrás, cujo motorista também iria comprar o jornal. E como parte do milagre, era um vizinho nosso.

Meu pai saiu do carro, pediu desculpas, e foi dar uma conferida na tampa do motor que, obviamente, não abriu!!!

Só tive tempo de olhar para o céu, e disfarçadamente, fazer o sinal de positivo, com o dedão! Chegando na missa, rezei uns dez Pai Nosso e outras tantas Ave Maria para saldar meu débito. Obrigado Senhor! Obrigado Minha Mãe do Céu!

Escapei! 

Rubem Passos Segundo
Salvador, outubro de 2015

IMAGEM DE CAPA: Animação Volkswagen Fusca - "The Last Mile" ("A Última Milha"), agência Johannes Leonardo, 2020, para a Volkswagen USA.

IMAGEM DO TEXTO: Acervo familiar (fotografia das anotações de aula em dezembro de 1961)

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1 comentários

  1. Nunca esqueço dessa história, Pai! Um clássico da família! Te amo!

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